Terra-a-Terra,
Informação sobre projectos

Não há dois projectos de arte comunitária ou participativa iguais. Mais, um mesmo projeto pode assumir formas diferentes ao longo do tempo, de ciclo em ciclo, se alcançar essa longevidade, ou até no decorrer de uma mesma edição. Acima de tudo, é praticamente impossível e, até certo ponto, indesejável saber os contornos exactos de um projeto deste cariz, antes de começar. A principal razão para que assim seja é o facto de implicar um processo co-construído entre todos na comunidade (a que pertence também o/a artista que o propõe), que assenta na comunicação e na reciprocidade, na abertura e no interesse mútuo, e cujo resultado é reflexo da pluralidade de vozes que se debruçam sobre uma ideia inicial e contribuem activamente para a sua transformação. Ao longo do processo e no melhor dos cenários, espera-se que este conjunto de vozes se transforme e combine, criando uma identidade e uma memória colectiva que se escreve e reescreve a várias mãos.

Pela sua natureza dinâmica, contextual e sinergética, não há nem se pretende, uma fórmula para um projecto de arte participativa. No entanto, distinguem-se características de projectos (algumas das quais serão exploradas de seguida) que poderão orientar as escolhas dos primeiros esboços de iniciativas desta natureza (ver Projectos Apoiados). As diferentes combinações de características resultaram em inúmeros exemplos de práticas inspiradoras nesta área.

Características de Projectos

Objectivo

Os projectos podem ter objectivos de natureza diversa. Essencialmente, o enfoque poderá ser o processo em si, o seu resultado, ou uma combinação de ambos. Por outras palavras:

  1. Processo - valoriza-se, sobretudo, a experiência colectiva que a atividade proposta implica, podendo resultar ou não num produto, por sua vez material ou imaterial. Por exemplo, a partilha por parte de residentes num lar de terceira idade da activação da memória comum através do repertório de música cantada, reflecte um objectivo de co-construção de significado ao longo do tempo.
  2. Resultado - considera-se importante o produto, material (e.g., objecto, composição) ou imaterial (e.g., actividade performativa), que resulta da atividade proposta. Exemplo disto é um projecto que oferece concertos comentados num local de convívio de uma comunidade, com o objectivo fomentar o espírito de pertença à comunidade através dessa experiência (produto imaterial).
  3. Combinação de processo e resultado - visa-se uma experiência colectiva que é reforçada pela existência de um ou mais produtos finais, pelo facto de evocarem a experiência vivida. A título ilustrativo, consideremos a pintura conjunta de um mural, cuja experiência empodera a comunidade criadora, ao mesmo tempo que se produz um produto material.
Comunidade

A escolha da comunidade com a qual colaborar no âmbito de um projecto de arte comunitária ou participativa reveste-se da maior importância, uma vez que esta comunidade será a base do projecto em si. De facto, dentro da comunidade encontram-se já ideias, recursos e motivações que permitirão fazer avançar um projecto neste âmbito. Cabe ao/à músico/a integrar a sua comunidade ao ponto de conhecer estas características e conseguir co-construir um projecto com as pessoas que lhes faça sentido e no qual se sintam implicadas.

De uma forma geral, as comunidades poderão ser constituídas por:

  1. elementos que já integram ou conhecem os meios tradicionais das artes;
  2. elementos que pertencem a círculos distintos e cuja experiência no projecto seria um primeiro contacto com este mundo.

Num projecto deste cariz importará conhecer deliberada e aprofundadamente o contexto social que esta representa para estabelecer as condições necessárias para uma colaboração positiva e autêntica com os interlocutores. De igual forma, será essencial manter presente que os vários participantes - quer sejam ou não artistas formais ou detentores de experiência na área - deverão ter os mesmos direitos em todo o processo.

Local

Os projectos de arte participativa poderão desenrolar-se em mais do que um espaço e em tipos de espaços diversos, como:

  1. Locais de arte - galerias, museus, entre outros espaços que estejam associados à experiência artística e preparados para o efeito;
  2. Não locais de arte - incluem a restante esfera pública, como a rua, as escolas, os hospitais, as prisões, as bibliotecas, etc.

A escolha do(s) local(is) deve ser pensada, considerando a comunidade e o processo/produto, num exercício de equilíbrio entre as expectativas, recursos e riscos.

Tempo

A qualidade de um projecto não dependerá apenas do tempo que a sua realização exija. Há projectos que ocorrem em poucas horas, outros que se desenvolvem ao longo de anos e muitos mais que se encontram algures neste contínuo. No caso da terceira edição do programa Terra a Terra, existe um período estipulado de 12 meses para a construção e implementação do projecto.

O número de horas alocado para o desenvolvimento do projecto, no âmbito deste programa, deverá ser definido, tanto quanto possível, em conjunto com a comunidade e a equipa da OSF, em função dos objectivos das actividades, que devem ser claros e realistas, considerando o interesse e a disponibilidade dos participantes, as condições do(s) local(is) escolhido(s) e os recursos disponíveis.

Como supramencionado, os pontos precedentes não pretendem ser descritores exaustivos referentes aos projectos de arte participativa, mas apenas pontos de reflexão sobre a natureza destes.

Projectos Apoiados

2.ª Edição - 2021/2022

No segundo ano de actividade, o projecto Terra a Terra apoiou dois projectos: De onde vem? Canções para Conversar e Criar, implementado em Castelo Branco e o projecto (Ou)viste Isto?, desenvolvido em Marvão

De onde vem? Canções para Conversar e Criar

O projecto De onde vem? Canções para Conversar e Criar, proposto e desenvolvido pelo músico João Pedro Carada, de 22 anos, natural de Rio Grande do Sul, Brasil, surgiu a partir do conceito da canção popular e teve como objectivo promover a formação musical e intelectual de jovens imigrantes, em Castelo Branco. Foi implementado no seio da comunidade do “Nós com os Outros”, iniciativa da Amato Lusitano – Associação de Desenvolvimento, compreendendo jovens dos 6 aos 26 anos. O projecto foi dinamizado através de oficinas de prática musical, privilegiando dinâmicas de expressão musical através do corpo e da voz, e de escuta do outro, durante cerca de um hora cada, com periodicidade semanal. Na fase final do projecto, foi possível adoptar-se uma modalidade mais imersiva, com a presença do João Pedro na comunidade durante dias seguidos, o que permitiu realizar mais sessões e a participação do João Pedro nas actividades dinamizadas pela Associação e tempos livres, levando a uma relação ainda mais próxima com o grupo. Ao longo das 18 sessões realizadas, a comunidade desenvolveu competências criativas (interpretação e criação de sons) e musicais (conhecimento e expressão de ritmo e harmonia, através do corpo e da voz) que resultaram na criação de um genérico para o projeto “Nós com os Outros” e na produção e interpretação de partituras gráficas. Num ambiente construtivo e de respeito, estabeleceu-se uma relação próxima entre os participantes e o João Pedro, que conseguiu enquadrar nas actividades crianças e jovens oriundos de circunstâncias diversas, num equilíbrio que provou ser tão desafiante como recompensador.

(OU)VISTE ISTO?

A violinista de 22 anos, Rita Santos, estudante em Aveiro, propôs e desenvolveu o projeto (OU)VISTE ISTO?, com o objectivo de dinamizar oficinas co-criativas musicais e plásticas para as crianças da Associação Planeta Alecrim de Marvão, ao mesmo tempo que procurou promover um envolvimento mais próximo da população local no âmbito da oferta cultural disponível, especificamente a do Festival Internacional de Música de Marvão (FIMM), seleccionado a partir do programa deste, as obras musicais para serem a base do trabalho realizado nas oficinas. Foram realizadas 4 oficinas, por grupo de crianças (um grupo de 13 crianças entre os 5 e 9 anos e outro grupo de 13 crianças mais velhas, com idades entre os 10 e os 14 anos), com periodicidade mensal, na sede da Associação Planeta Alecrim. Cada ciclo de oficinas ocorreu ao longo de duas tardes (uma alocada a cada grupo), permitindo uma experiência de colaboração mais imersiva e intensiva, que incluiu vários momentos informais importantes para o estabelecimento da relação entre a Rita e comunidade, nomeadamente as crianças e as suas famílias, que participavam em todos os aspectos da rotina da comunidade. Nos períodos entre sessões, foi possível também manter o contacto e a reflexão sobre os conceitos trabalhados, através de propostas assíncronas deixadas pela Rita, que permitiram que o conteúdo das sessões se estendesse no tempo, no espaço e pelas pessoas, entrando na vida das famílias, que o abraçaram vivamente. No final foi dinamizada uma sessão de retrospectiva de todo o processo com os pais das crianças envolvidas. Após a conclusão do projecto, a Rita realizou a curadoria dos trabalhos das oficinas (para tal criou áudio-guias para contextualizar cada trabalho e o enquadramento geral do processo), expostos no âmbito do FIMM, no Centro Cultural de Marvão, o que permitiu, assim, estender a colaboração da comunidade de crianças à comunidade mais alargada da região. A par da exposição, foi feita a articulação com a direcção do FIMM de modo a garantir convites para o festival, atribuídos às crianças que participaram no projecto e às suas famílias, para ouvirem as obras que inspiraram o seu trabalho em comunidade.

1.ª Edição - 2020/2021

Na edição de lançamento do programa Terra a Terra, ainda em período de grandes constrangimentos decorrentes da pandemia, foram desenvolvidos três projectos, nomeadamente Oficina de Música para Mulheres, O Chão é d’Elas e Entre o Passado (ambos junto de comunidades em Évora) e o Futuro, a Memória (Boticas, Vila Real), os quais serão descritos de seguida.

Oficina de Música para Mulheres

O projecto Oficina de Música para Mulheres foi desenvolvido, em Évora, pela violinista brasileira de 24 anos, Lizana Loch, estudante, primeiramente idealizado e implementado no seio da comunidade da Associação Ser Mulher, constituída por 13 mulheres, vítimas de violência doméstica, apoiadas pela Associação. No entanto, pelas circunstâncias difíceis vividas, devido à pandemia, não foi possível avançar logo com sessões presenciais (optando-se por sessões online e a criação de propostas assíncronas) e, apesar dos esforços por estabelecer e manter o envolvimento do grupo, foi necessário repensar o projecto e convidar outra comunidade a desenvolver o projecto. O convite foi aceite pela Associação de Paralisia Cerebral de Évora (APCE), tendo sido dinamizadas oito sessões de frequência semanal, realizadas na sede desta. Consistiu num espaço com três objectivos: a escuta ativa e a análise de canções com temáticas de empoderamento feminino, a discussão sobre os temas abordados nas canções considerando a experiência de vida das participantes, bem como uma iniciação à prática musical. A prática musical, explorada em cada sessão, envolveu a progressiva aquisição e desenvolvimento de competências no âmbito de quatro pilares da música - i.e., pulso, ritmo, melodia e harmonia - fundamentais para trabalhar e apresentar duas canções em coro, o que aconteceu no Arraial da APCE, na Quinta do Pomarinho, para os pais das crianças e jovens clientes da Associação. Para além da oportunidade de desenvolver as suas capacidades enquanto organizadora de projecto e facilitadora de sessões numa comunidade muito especial e acolhedora, com quem estabeleceu uma relação próxima, a Lizana foi convidada a escrever um artigo sobre o projeto, em co-autoria com a musicoterapeuta da Associação, e apresentá-lo na Conferência Internacional COIMBRA sobre DIREITOS HUMANOS, com o tema “Alienação e Direitos da Mulher” em Outubro de 2021.

O Chão é d’Elas

O projecto O Chão é d’Elas da Yekaterina Kuchinskaya, violinista russa de 23 anos, foi realizado em colaboração com a residência de acolhimento temporário feminino da Associação Chão dos Meninos, em Évora, contando com 15 participantes, entre os 13 e os 17 anos. Teve como objectivos criar um espaço seguro e de partilha, promover a reflexão sobre o empoderamento feminino através da música, bem como recolher e construir colectivamente versos a partir das canções exploradas, documentando o trajeto da experiência. As oficinas, que tiveram lugar na sede da Associação, foram organizadas numa perspectiva semanal, trabalhando catorze temas (desde os papéis e estereótipos de género, o feminismo e a sororidade, ao movimento #metoo, o consentimento e uma visão de empoderamento feminino para o futuro) através de canções alusivas aos mesmos. Devido à pandemia de COVID-19, o processo de contratação com a Associação foi mais demorado (terminou apenas no final do mês de Março), na tentativa de determinar o conjunto de medidas de segurança que assegurasse o bem-estar físico de todos os envolvidos e um horário compatível para todas as partes. Para dar início às sessões, não obstante o confinamento obrigatório, a Associação propôs a divisão da comunidade original em três grupos mais pequenos, com cinco participantes em cada, organizados de acordo com a afinidade entre si. Um dos aspectos mais positivos deste processo foi verificar que à medida que o projecto se desenvolvia e que a confiança das pequenas comunidades crescia, as participantes começaram a ter a iniciativa de sugerir novas músicas para as temáticas que iam sendo abordadas. Na fase final do projecto, foram dedicadas duas sessões por grupo à co-criação artística, partindo das canções para a representação gráfica dos temas e significados encontrados ao longo das sessões. Os trabalhos foram afixados no quarto das participantes, dentro da Associação, e houve um lanche, por grupo, para celebrar os três meses de colaboração.

Entre o Passado e o Futuro, a Memória

Entre o passado e o futuro, a memória é um projecto de arte comunitária iniciado por Beatriz Mendes, na altura, trombonista de 26 anos, de Boticas, e, actualmente, membro da equipa OSF, no âmbito da Música na Comunidade. O primeiro ciclo do projecto teve lugar entre Janeiro e Julho de 2021, envolvendo 101 participantes e a participação de múltiplas associações (Escola de Música da Banda Musical de Couto de Dornelas; Banda Musical de Couto de Dornelas; Grupo de Cavaquinhos da Associação de Desenvolvimento de Dornelas; Grupo de Cantares de Couto de Dornelas; Associação Cultural, Desportiva e Recreativa da Serra do Leiranco; Cruz Vermelha de Boticas; e o Centro Cultural e Recreativo de Pinho), com o objectivo de abordar o despovoamento do município de Boticas e suas consequências, através da recolha de memórias, sentimentos e sonhos das pessoas locais nos últimos 60 anos, para os transformar em música. Para divulgar o projecto, foi pedida a divulgação por parte da Câmara de Boticas, através das redes sociais, e aos párocos no final da celebração das missas; criou-se uma página de Facebook; realizaram-se entrevistas para jornais e rádio locais; o designer da OSF desenhou cartazes, colocados, posteriormente, em todas as aldeias do município pela Beatriz. O projecto compreendeu três fases: recolha de histórias e memórias; sessões de partilha, discussão e reflexão; e sessões de criação musical. A página de Facebook foi utilizada também para a comunicação dos resultados de cada fase do projecto. Para retratar e dar uma imagem ao projecto, foram utilizadas fotografias da região de Boticas, do anos 80, do fotógrafo Rui Mendes. No decorrer do projecto, foram realizadas 15 entrevistas individuais a pessoas com idades compreendidas entre os 38 e os 92 anos, presencialmente online, permitindo entrevistar pessoas a viver no estrangeiro (Inglaterra e Espanha). Seguiram-se as sessões de partilha em grupo, intituladas “Vamos falar”, conversas informais, onde se debateram questões que afectam a vida dos habitantes de Boticas. De seguida, tiveram lugar as sessões de exploração e criação musical, nas sedes de cada associação/instituição. Estas sessões visavam a criação de músicas a partir dos testemunhos recolhidos anteriormente, os quais foram organizados em grandes temáticas comuns. Cada temática foi atribuída a um grupo musical para inspirar o seu processo de co-criação. Concluída a primeira edição deste projecto, verificou-se que os seus objectivos não só foram cumpridos, como eram de extrema importância para a comunidade que permitiu que fossem atingidos e que os espelhou nas canções criadas. Eram eles:

  • Explorar a experiência coletiva de quem é originário ou residente na região de Boticas, de forma a entender as razões do despovoamento local;
  • Criar momentos de conversa, partilha, discussão e reflexão sobre o isolamento e suas consequências;
  • Criar momentos de convívio e partilha intergeracional;
  • Recolher, preservar e valorizar a história das pessoas e dos seus lugares;
  • Registar o presente;
  • Alargar o acesso à arte, dando o direito e a capacidade de participar de forma livre, plena e igual na fruição das artes e na criação do trabalho artístico;
  • Consciencializar para o impacto positivo que cada um pode ter na sua comunidade;
  • Criar música com o contributo e participação de todos, partindo das histórias e depoimentos recolhidos ao longo do projecto. No total, foram criadas cinco músicas inteiramente compostas pelos participantes.